O final do ano é um momento propício para revisitar uma séries de decisões, acordos e hábitos familiares. O que funcionou a gente melhora. O que não funcionou a gente substitui. Muitas crianças e jovens aguardam ansiosas a chegada do Natal não só pelos momentos em família, mas porque ganharão seu primeiro dispositivo (ou trocarão o atual por um mais “poderoso”).
Crianças usando o celular. Fonte: unsplash.com
A tecnologia traz muitos benefícios e um outro nível de recursos e acesso para nossos filhos. Cabe a nós sermos os guias, os educadores, os facilitadores deste processo. Mas quais os critérios devo considerar para liberar o primeiro dispositivo? Como estabelecer um uso consciente e equilibrado? Como medir o efeito das telas na vida deles? Quais os riscos embutidos nesta decisão?
Muitos pais não cresceram com acesso a um dispositivo e internet ilimitada (eu inclusive). Não vivemos esta realidade, não fomos preparados para esta tarefa, mas temos a responsabilidade. Seguem sete pontos que me ajudaram a abraçar este compromisso com mais confiança para inspirar as resoluções de ano novo.
1. Saiba se seu filho(a) está pronto para ter seu primeiro dispositivo
A decisão de dar o primeiro dispositivo ou trocar por outro com mais funções e possibilidades não deve ser balizada na idade, mas na maturidade da criança em relação a seus hábitos desenvolvimento de uma maneira holística. Os sinais que os pais devem procurar para tomar esta decisão encontram-se em hábitos e sistemas de apoio estabelecidos: bom desempenho escolar, facilidade em se comprometer com a lição de casa, em se dedicar às atividades extracurriculares, boa interação com os amigos na vida real, muito de tempo de qualidade em família (o que na prática significa sem telas), interesse em atividades desvinculadas das telas e uma rotina de sono saudável. Estes são bons exemplos de balizadores para avaliar se a chegada de uma tela será um fator facilitador ou dificultador.
2. Construa um acordo familiar a respeito
Encontrar o equilíbrio entre as atividades do mundo real e as oferecidas pelo dispositivo pode ser extremamente desafiador e por isso as alternativas mais efetivas (e menos penosas para todos envolvidos) passam pelo estabelecimento de acordos realistas no contexto de cada família. Este é o momento ideal para estabelecer as configurações de segurança e privacidade, tempo e horários de tela, dar diretrizes sobre acesso a conteúdos de acordo com a faixa etária, definir os aplicados e jogos permitidos, abordar a importância de pensar criticamente antes de postar, compartilhar e comentar, dentre muitos outros aspectos. Também recomendo discutir o que acontece caso os acordos sejam quebrados. Embora existam muitas recomendações do que deve ou não ser feito, o mais importante aqui é colocar todos na mesma página tendo a saúde e bem-estar da criança e da família como foco e, fundamentalmente, não deixando dúvidas quanto ao que é esperado de cada um neste processo.
3. Defina usuário e senha seguros
Consideradas entre as primeiras e mais cruciais atividades da vida digital, geralmente não levada a sério pelo público infanto-juvenil. Se observarmos bem, até mesmo os adultos vacilam. No caso da criança, o nome do usuário escolhido para um aplicativo ou jogo não deve dar pistas de seu nome, idade ou gênero. Estas são as primeiras pistas que criminosos dos mais diversos perfis buscam para iniciarem uma conexão com suas vítimas. Já a senha, equivale a chave da nossa casa. Ela protege informações, dados pessoais e, em muitos casos, os dados do cartão de crédito dos pais. Recomendo que os pais ajudem os filhos nestas etapas, inclusive guardando os usuários e as senhas escolhidas. O número de roubo de contas online segue crescendo de forma assustadora. De forma alguma deve-se manter o mesmo usuario e senha para tudo. Ficar seguro requer dedicação e o quanto antes eles aprenderem isso melhor!
4. Entenda os jogos online como plataformas sociais
Os jogos online amplamente populares como Roblox, Fortnite, League of Legends, apenas para mencionar alguns, se tornaram o lugar favorito para bate papo, envio de mensagens e conexão entre o público infantil e pré-adolescente. Eles têm sido a primeira experiência online com interação social das crianças, anos antes da entrada em redes sociais mais conhecidas e alvos das preocupações dos adultos. Uma sala de jogo online reúne e possibilita a interação de jogadores de diferentes idades, interesses, maturidade, competitividade, dentre outros aspectos. Desde muito cedo, as crianças tem tido interações sociais enquanto se divertem e isso exige constante atenção. Casos de bullying, assédio, discurso de ódio são comuns, sem mencionar a existência de predadores que acabam se aproveitando destas plataformas para encontrar suas vítimas. Neste final de semana, o New York Times publicou mais um artigo alarmante sobre crianças ludibriadas por predadores sexuais em diferentes jogos. As ferramentas de controle parental existentes ajudam, mas não são suficientes para impedir a exposição aos riscos. Embora este mundo não seja tão familiar para muitos de nós, envolver-se e trabalhar a prevenção deve fazer parte de nossas conversas diárias.
5. Construa a consciência de que um amigo virtual será sempre um estranho
Para uma criança os mundos físico e virtual são ambos muito reais. Sendo assim, um colega de jogo ou um “amigo” que ela acabou de adicionar no Instagram será considerado facilmente como um amigo da escola ou do prédio. Esta pode ser uma porta aberta para milhões de “amigos” potenciais. Na prática da criança, uma amizade virtual significa abrir-se para criação de um vínculo de confiança e diminuir o estado de atenção, pontos que favorecem criminosos e predadores. É importante lembrá-los constantemente que uma pessoa que não está no ciclo de amizades na vida real será SEMPRE uma estranha, não importa quão bacana ela seja.
Convites para se comunicar em particular com estranhos dentro de um jogo ou para migrarem para outras plataforma devem ser vistos como sinais de alerta.
6. Participe da construção da pegada digital do seu filho (Digital footprint)
Ser ativo nas mídias sociais, usar a internet para trabalhos da escola, para ouvir música, fazer compras e assistir seriados faz parte do cotidiano da juventude. Em questão de segundos, eles podem expor sua vida pessoal não apenas para amigos mais próximos, mas para o mundo inteiro sem nunca ter a garantia de que isto será apagado de forma definitiva. É difícil não ter uma pegada digital hoje em dia, mas devemos ajudá-los a criarem uma imagem on-line que ao mesmo tempo, os represente e proteja de experiências prejudiciais. Esta mesma preocupação se aplica para o repasse, comentários ou reposts de situações ou pessoas de forma descuidada que pode impactar a pegada digital de um outro ser humano de forma irreversível.
7. Cultive a cidadania digital
A cidadania digital envolve a capacidade de participar com segurança, responsabilidade e senso crítico no mundo digital. Criar, conectar, colaborar e comunicar-se usando as mais diversas ferramentas para contribuir de forma positiva com a família, a escola, os amigos, uma causa também fazem parte deste processo e ajudam a construir resiliência e empatia. Estas qualidades são essenciais para a criação de um ambiente online saudável e vão respaldar a tomada de decisões de crianças e jovens diante das situações mais diversas. Grooming, sexting, sextortion, pornografia e outras formas de exploração, assim como bullying, discriminação, roubo de contas e de dados fazem parte deste mundo. São riscos a serem constantemente administrados. Este senso crítico é o que leva uma criança a pedir a ajuda dos pais em uma situação duvidosa, um jovem a denunciar pessoas tóxicas num jogo, ou a ajudar um amigo que está sofrendo cyberbullying.
Num mundo com crescente volume de informações e decisões a serem tomadas em tempo real, construir hábitos digitais saudáveis é algo que precisa estar sempre no radar dos pais. Estamos constantemente sendo observados e nossos filhos se espelham em nossos comportamentos. Este artigo tocou em alguns pontos de uma longa trajetória que nos espera. Que possamos caminhar juntos, de forma construtiva e sem julgamentos.
Vejo vocês em 2020!
Maria Tamellini, co-founder and COO GamerSafer
Maria é mãe de 3, empreendedora, apaixonada por impacto social. Em um mundo cada vez mais conectado e em rápida transformação, ela abraçou o compromisso de tornar plataformas online mais seguras para crianças e jovens. Ela co-fundou a startup GamerSafer no Vale do Silício e desenvolve tecnologias focadas na prevenção da exploração infantil, bullying, assédio e fraudes para empresas e desenvolvedores de jogos online. Liderou por 11 anos uma consultoria focada em sustentabilidade e impacto social no Brasil, assessorou 150 organizações em diversas regiões mundo e, na Kiva, ajudou a levantar US$ 6 milhões em um mês para projetos de mulheres em situação de vulnerabilidade. Tem MBA, especialização e certificação internacional em negócios sociais, mas acredita que mais aprendeu fazendo, dando a cara para bater, construindo junto, criando comunidades e sendo parte delas.